Habitualmente, minha via de acesso à obra de arte e ao artista passa por um procedimento mais crítico e afetivo que histórico. Interessam-me os valores artísticos e plásticos da obra em si, a capacidade que ela tem de convencer, de me envolver, e sua inserção num determinado contexto cultural – bem mais que as circunstâncias episódicas em que tenha sido criada. É claro que estas aparecem, assim como a aventura individual do autor no terreno da criação – mas como subsídios para compreender o fenômeno da obra.

   No caso de Décio Soncini , devo admitir que existe um interesse histórico maior do que de hábito. E, evidentemente – já que se trata de um artista de 35 anos, em plena produção – interesse pela própria história que se está fazendo ao nosso redor, no instante em que ela acontece. Soncini pertence a um grupo hoje batizado de “Grupo Guainazes” (a partir do fato de que a maioria mora ou trabalha nesse bairro da periferia paulistana), e do qual ainda fazem parte o desenhista Jair Glass e os pintores Antônio Vítor, Charbel e Francisco Gonzalez, além de  alguns outros chegados mais recentemente.

   Não se trata, na verdade, de um grupo formalmente articulado, ou com um atelier em comum. Originou-se no começo da década de 70, quando Soncini conheceu Antônio Vítor, na Faculdade de Belas Artes de São Paulo. Antônio Vitor já era amigo de Charbel, e Jair Glass também freqüentava a mesma escola. Muito naturalmente, e sob a liderança de Vítor, um pouco mais velho que os outros, eles começaram a se encontrar nos fins de semana em seu atelier, no segundo andar de um sobrado em Guaianazes. Era o esquema habitual nesse tipo de encontro: muita conversa, muita cerveja, sessões de desenho em que uns usavam os outros como modelo, execução de gravuras, e eventualmente saídas para pintar paisagens do natural.

   Creio que essa descrição já lembra um outro fenômeno ocorrido há mais de cinqüenta anos na arte paulista: o Grupo Santa Helena. Não pretendo comparar os dois grupos, no que se refere às obras por eles produzidas; mas há inegavelmente, pontos significativos em comum. Assim como o Santa Helena, o pessoal do Guaianazes partiu de um “approach” muito mais artesanal com a arte, menos intelectual que o das vanguardas paulistas. O Santa Helena representava um visão do mundo e a arte de um extrato social diferentes do modernismo “patrício” ligado à semana de 22. O mesmo acontece com o Guaianazes, que, embora não intencionalmente, é um contraponto à arte pensada por elites. E há outras coincidências. Os integrantes do Santa Helena, para sobreviver, tiveram que se dedicar a atividades artesanais semi-operárias; os do Guaianazes foram, durante muito tempo, professores de educação artística na periferia (Jair Glass ainda é). Além de também serem, eventualmente, artesãos: há uma molduraria que pertenceu a Antônio Vítor, depois a Charbel, e hoje é de Soncini. Dela ele ainda retira o principal de seu sustento.

   Mesmo não sendo, repito, um grupo intelectualmente articulado (como foram, para citarmos o extremo oposto, os concretistas, ou mesmo a “Escola Brasil”, de Resende, Baravelli, Nasser e Fajardo), os fatos evidenciam que o pessoal do Guaianazes tem um ideal estético próprio, diferente dos projetos “patrícios” dos anos 70. Marcados, talvez, pelo entorno, os artistas de Guaianazes nunca se voltaram para a pesquisa de linguagem ou a arte experimental, nem se alimentaram das revistas internacionais que trazem a moda do momento; alimentaram-se, mesmo de “Gênios da Pintura”, e olharam que está a seu redor. Mas, ao mesmo tempo, eram bastante informados e filhos de seu tempo para se interessarem, simplesmente, por uma arte de ingênua denúncia, ou uma arte “social” direta. Por isso, o ponto comum que estilisticamente liga todos eles é o fascínio por uma linguagem que mistura o expressionismo ao fantástico, e a auto-inserção numa família que compreende James Ensor a Francis Bacon – a qual pode, sob certa ótica, ser considerada datada .

   Mas enquanto tendência genérica, nenhum tipo de arte é obsoleto; e é nesse universo atemporal que artistas como Soncini (e Glass e Charbel) têm encontrado a seiva que lhes alimenta a criação. Indagado sobre essa questão, Décio Soncini apresenta uma hipótese para explicar seu caso pessoal: “O indivíduo da cidade grande tem a tendência a se fechar”. Mais: “Nasci em São Paulo, mas não consegui ainda sair, sequer, do meu próprio quarto”. Seu trabalho é, pois, introspectivo, auto-reflexivo, mais dramático que lírico, feito da valorização de situações intrigantes e instigantes.

   É também uma pintura de cor, de matéria e gasto, nervosa, feita em ritmo intenso. Embora à primeira vista não pareça, Décio Soncini se declara um temperamento agitado, que encontra, justamente na pintura, a válvula de escape que lhe permite manter o equilíbrio. Isso resulta num trabalho catártico, dotado ainda de ironia e patetismo. O projeto de Soncini é o oposto do conhecido projeto de Matisse. Este falava de uma arte acolhedora, receptiva, tranqüilizante, que funcionasse para o homem como um momento de repouso após as fadigas do dia-a-dia. Soncini quer provocar idéias, reflexões, até incômodos. “O que motiva a maioria dos artistas é mudar o mundo”, diz ele; mesmo que, na prática, reconheça que “em momento algum o artista mudou alguma coisa”.

   Mas não se trata de um pessimista – e sim de um ser consciente. Acho importante que se tome conhecimento e se valorize essa arte, nascida de um contexto especial – que não é, repito, o dos Jardins, Pinheiros, Vila Madalena e outras áreas de intelectuais e artistas – e representativa de um universo que não é apenas o do indivíduo Décio Soncini, mas também o do grupo ao qual ele pertence. (Por isso mesmo, fiz questão de lhe dar tanto destaque neste texto). A criação artística se faz sempre em diferentes estratos simultâneos e paralelos. Aqui está um deles, legítimo e autêntico.

 Olívio Tavares de Araújo

        

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Décio Soncini



Currículo artístico



Antonio Zago - Revista "Isto É" - abr./1982 



Alberto Beutemüller - Revista Visão/abr. de 1982 



Enock Sacramento - Exposição - 1985 / Apresentação



Radah Abramo - Revista "Isto É" - março/1989 



Walter de Queiroz Guerreiro - Exposição - 1993 / Apresentação



Artigo publicado no jornal "A Noticia" em outubro de 2003



Walter Queiroz Guerreiro - Inédito - Maio/2008 



Raul Forbes - Apresentação da exposição "Paisagens" - setembro/2011 



Lúcia Chaves - "Os infinitos cantos do ateliê" - maio/2014 



Walter de Queiroz Guerreiro - "Passagens" - agosto/2014 



Enock Sacramento - 4.2 Gonzalez e Soncini - 2019



Walter de Queiroz Guerreiro - Luz e sombras - 2021


 
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