Duas obras distintas e uma amizade única

Enock Sacramento

 

Esta exposição comemora quatro décadas de uma relação de amizade, mas também de trabalho, entre dois artistas paulistanos: Décio Soncini e Francisco Gonzalez. Mais precisamente, 42 anos pois foi em 1977 que eles se conheceram, por intermédio de Antônio Vitor, então professor de Gonzalez na Contemporânea Escola de Artes, em São Paulo.

Décio e Antônio Vitor já se conheciam desde o início dos anos 70, quando estudaram na Escola de Belas Artes de São Paulo, que ocupava parte do prédio da Pinacoteca do Estado, na Avenida Tiradentes, bairro da Luz.

Na Belas Artes, Antônio Vitor e Décio tinham um amigo em comum, Jair Glass, que também lá estudava. A convite do primeiro, que tinha um ateliê em Guaianazes, no extremo leste da cidade de São Paulo, Décio e Jair passaram a frequentá-lo. Lá conheceram outro artista, Charbel que, residente em Guaianazes, era habitué do estúdio de Vitor. Não demorou e ao grupo se juntou também Francisco Gonzalez. Estava formado o Grupo Guaianazes, cujos membros se reuniam, pelo menos uma vez por semana, no ateliê de Antônio Victor para discutir questões relacionadas com a arte, trocar opiniões sobre seus trabalhos e a se ajudarem mutuamente na conquista de um espaço no sistema de arte de São Paulo.

Quem me levou até eles foi um outro artista, Paulo Chaves, que também os aproximou da Galeria Paulo Prado, da qual era uma espécie de guru nos primeiros anos de sua existência. Esta galeria, inaugurada em 1975 com uma exposição do próprio Paulo Chaves - pintor abstracionista de excepcional qualidade, atualmente no limbo do mercado de arte - desenvolveu um trabalho notável nos anos 70/80, expondo sobretudo artistas plásticos emergentes e talentosos. Desenvolvendo práticas eficientes de mercado, esta galeria ficou famosa por inaugurar suas exposições com quase todas as obras vendidas, quando não todas, quase sempre. Foi um período de ouro para a arte em São Paulo.

Por indicação de Paulo Chaves, a Galeria Paulo Prado acolheu os cinco artistas do Grupo Guaianazes. E a mim também, como crítico. Tive oportunidade de prefaciar vários catálogos de exposições que lá se realizaram, entre elas uma do Décio Soncini, em 1985, e outra do Francisco Gonzalez, em 1989. No catálogo desta, mencionei a participação assídua dos “guaianazes” no Salão de Arte Contemporânea de Santo André, que ajudamos a criar em 1968, e a realização de mostras coletivas dos membros do grupo na Sala de Exposições do Centro Cívico da cidade.

Em 1978, Gonzalez e Décio lá expuseram, juntamente com Antônio Vitor. No texto de apresentação da mostra, Paulo Chaves analisa as obras de Gonzalez e Soncini em conjunto: “Possuem em comum o gosto acentuado pelo trabalho limpo e construído; enquanto, porém, Gonzalez se encaminha para composições rigorosamente organizadas em suas formas e planos, Décio parece atraído em direção a um expressionismo fantástico”.  Se se analisar as obras que estes artistas produziram a partir de seus encontros em Guaianazes, constata-se que, embora cada um tenha seguido seu próprio caminho, apresentam em comum o caráter figurativo e “a origem social e estética”, como bem acentuou o crítico Olívio Tavares de Araújo em consubstanciado texto de apresentação do Grupo, que abre o catálogo da exposição “Grupo Guaianazes”, realizada em 1996.

O tempo passou. Hoje, quatro décadas depois, o Joh Mabe Espaço Arte e Cultura reúne a obra desses dois artistas que, com esta mostra, celebram a arte e a vida.

Francisco Gonzalez permanece fiel a seu vocabulário, à sua sintaxe e a seu virtuosismo técnico. Não é um arrivista preocupado com a moda, mas um artista consciente, que desenvolveu sua linguagem plástica e permanece fiel a ela, enriquecendo-a com uma certa modulação decorrente da maturidade. Ele descobriu seu caminho e o percorre até o infinito. Gonzalez vê o mundo com olhar virginal, despreocupado com o nexo ou a coerência, e o flagra sem levar em conta as relações lógicas entre ideias, atos e situações. Em sua pintura, as coisas são colocadas como se lhe ocorrem. E se assim elas lhe são reveladas, é porque elas assim podem existir.  Fernando Pessoa nos passou algo parecido quando escreveu: “o que nós vemos das cousas são as cousas”. E, na sequência, enfatiza a conveniência de “Saber ver sem estar a pensar, / Saber ver quando se vê. / E nem pensar quando se vê, / Nem ver quando se pensa”. Este é o território em que transita a sensibilidade do artista. Esta é a sua pintura, que exclui a presença física do homem, embora a pressuponha. Pintura geralmente silenciosa, mais próxima de uma música de câmera do que de uma sinfonia, mas que surpreende, instiga e desafia permanentemente o olhar do espectador.

Mais inquieto, Décio Soncini começou sua produção artística no início dos anos 70 pelo desenho e pela gravura, aproximando-se da pintura em meados desta década. A paisagem e a natureza morta o atraíram nessa primeira etapa, mas logo foram substituídas por figuras humanas misteriosas, ambíguas, em ambientes imprecisos, carregadas de potência expressiva. As obras que vi e analisei em 1985, na Paulo Prado, eram deste viés: passavam uma sensação de confinamento, perplexidade e conflito, remetendo às vezes ao universo opressivo de Francis Bacon. Depois desse período de dissecamento do homem e de sua alma, Soncini voltou-se novamente para a recriação da natureza à qual dedica a maior parte de seu trabalho criativo no momento. A natureza de Soncini, todavia, não é naturalística. Ele capta dela as formas dos troncos, dos galhos, das flores, dos entrelaçamentos, sua estrutura morfológica, e os espaços vazios.  Suas cores, todavia, são completamente inventivas. Não têm nada a ver com as cores naturais. Portanto, Soncini recria a natureza em um de seus aspectos mais significativos plasticamente. Sua pintura é uma sinfonia de cores que se manifestam e cantam até nas sombras e na escuridão da noite.

 

    

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Décio Soncini



Currículo artístico



Antonio Zago - Revista "Isto É" - abr./1982 



Alberto Beutemüller - Revista Visão/abr. de 1982 



Enock Sacramento - Exposição - 1985 / Apresentação



Olívio Tavares de Araújo - Exposição - 1988 / apresentação



Radah Abramo - Revista "Isto É" - março/1989 



Walter de Queiroz Guerreiro - Exposição - 1993 / Apresentação



Artigo publicado no jornal "A Noticia" em outubro de 2003



Walter Queiroz Guerreiro - Inédito - Maio/2008 



Raul Forbes - Apresentação da exposição "Paisagens" - setembro/2011 



Lúcia Chaves - "Os infinitos cantos do ateliê" - maio/2014 



Walter de Queiroz Guerreiro - "Passagens" - agosto/2014 



Walter de Queiroz Guerreiro - Luz e sombras - 2021


 
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